Fala galera!
Esse será meu post de estréia que realmente tem “assunto”.
Vou fazer o review de um jogo antigo de RPG que teve, e continua tendo, uma
legião de fãs: estou falando de Lobisomem:
o Apocalipse, ou simplesmente Lobis,
como meu grupo de jogo chamava carinhosamente, com preguiça de falar o nome
inteiro.
Durante os anos 90, época do boom do RPG no Brasil, a Devir
Livraria, hoje tradicional editora de jogos de RPG e HQs apostou em publicar a
versão traduzida do Mundo das Trevas, da americana White Wolf. Naquele tempo, a
galera que curtia RPG já jogava D&D e coisas afins, quase sempre com uma
proposta de ambientação medieval, com goblins, orcs, elfos, anões, magos, vocês
sabem como é. Percebendo a febre que assolava os EUA (na época, alguns anos luz
em termos rpgísticos à frente), a Devir quis fazer diferente: lançou jogos de
horror sobrenatural ambientados no nosso mundo, ou num mundo parecido com o
nosso, em que os jogadores interpretavam criaturas míticas, cheias de conflitos
pessoais e dilemas. Não que jogos de horror fossem novidade lá fora, Call of
Cthulhu, por exemplo, já existia desde 1981, só que isso vai ser resenha pra
outro post. No nosso solo tupiniquim, nada parecido tinha sido publicado antes.
A Devir publicou então a série de RPG do Mundo das Trevas, escrita pelo autor
Mark Hein Hagen, muito aclamada lá fora.
O carro chefe dessa onda foi Vampiro: a Máscara, o primeiro a ser lançado em português. Não vou
me prolongar muito sobre ele, mas posso garantir que foi um sucesso estrondoso no
meio rpgístico aqui no Brasil e que teve um impacto grande na galera que
jogava. Os jogadores interpretavam vampiros com poderes sobrenaturais que
viviam escondidos entre os humanos, numa guerra de poder eterna. Acho até que
muito do visual esquisitão de muitos jogadores e a forma como a sociedade
passou a enxergar o RPG como uma atividade de gente meio maluca se deve a
influência desse jogo específico. Naquele tempo, o que teve de adolescente
andando de botas e roupas escuras em pleno meio-dia, e querendo bancar de
vampiro na vida real, não foi brincadeira. Eu acredito, particularmente, que
foi um dos maiores “onffs” coletivos da história do RPG. Você não sabe o que é “onff”?
Explico, pequeno aprendiz. “Onff” é como chamamos o ato ou jogador que não
separa a atitude do player da do personagem, ou o conhecimento do jogador do
conhecimento do personagem. Sabe aquele chato que passa a sessão inteira dando
pitaco na escolha dos outros jogadores, quando o personagem dele sequer está na
ação? Ou aquele outro player que você nunca sabe quando ele está interpretando
ou não seu personagem? Pronto, isso é o famoso “onff”. A expressão vem de on
play/ off play, algo que dizemos para o mestre de jogo quando queremos deixar
claro que uma ação pertence ao jogador e não ao personagem e vice versa. Como
nunca sabemos ao certo o que o jogador “onff” está fazendo, é como se ele estivesse
on e off play ao mesmo tempo, daí “onff”. Fim da lição. De volta ao post.
Enfim, o fato é que foi um sucesso
mesmo. Vendo isso a Devir não demorou muito a lançar o segundo jogo da série, o
Lobisomem: o Apocalipse. Em essência o jogo era ambientado no mesmo mundo que
Vampiro, chamado punk-gótico, um cenário parecido com nossa realidade, só que
mais pessimista e obscuro. Do mesmo modo, os jogadores interpretavam criaturas
lendárias, nesse caso, lobisomens. E utilizava as mesmas regras, o sistema
Storyteller, que se baseava em jogadas de dados de 10 lados. Epa, eu não tinha
falado dele, o sistema de regras? Que pecado, pois ele foi também um dos
responsáveis pelo sucesso do Mundo das Trevas. Vá lá que às vezes não era muito
verossímil, mas seu trunfo era a simplicidade: as jogadas eram baseadas na
combinação dos pontos que seu personagem possuía em um atributo (coisas inatas
como força, inteligência, carisma, etc.) com uma habilidade (coisas que você
aprendia no decorrer da vida, como dirigir um carro, brigar, ciências, etc.). Cada
ponto do seu atributo e/ou habilidade equivalia a um dado (d10) na jogada, que
tinha uma dificuldade, um número alvo a ser alcançado pelos dados, estabelecida
pelo mestre. Vou dar um exemplo, para clarear. Imaginemos que o seu personagem
desejava saltar um muro. Você somaria o atributo Força (ou Destreza, dependendo
da situação) mais a habilidade Esportes. Vamos supor que seu valor em Força
fosse 3 (uma boa pontuação, considerando que o escopo dos pontos variava de 1 a
5 nos humanos, até mais em criaturas sobrenaturais) e seu valor em Esportes
fosse 2 (aqui variava de 0 a 5). Somando 3 mais 2, você teria cinco pontos:
cinco dados d10. Então o mestre determinava uma dificuldade, que variava de 2
até 10, sendo 2 a dificuldade absurdamente fácil, 6 a dificuldade mais comum e
10 quase impossível. Imaginemos que no nosso exemplo, o mestre estabeleceu a
dificuldade 7. Bastava então arremessar os cinco d10 e ver quais seriam iguais
ou maiores que 7. Cada dado com um valor igual ou superior ao número alvo era
chamado de “sucesso” e a quantidade deles afetava o quão bem executada seria a
tarefa. Bem, no geral, era mais ou menos isso. Praticamente todas as ações do
jogo poderiam ser resolvidas dessa forma, com uma ou outra exceção. Mais fácil
que roubar um orc bêbado paraplégico.
As semelhanças com seu jogo irmão-mais-velho,
Vampiro, no entanto, paravam por aí. Lobisomem, ao contrário de seu antecessor,
focava muito pouco ou quase nada em intrigas, manipulações e políticas. Tampouco
em dramas existenciais, como no caso dos vampiros, que carregavam o fardo de
serem mortos-vivos vivendo para sempre, blá-blá-blá. Lobisomem era bem mais
enxuto, possuindo uma premissa mais “na cara”. Os jogadores interpretavam
lobisomens monstruosos, muito mais fortes e rápidos que os seres humanos
comuns, que tinham como objetivo enfrentar uma entidade maligna chamada Wyrm e
seus seguidores, nem que isso custasse suas vidas. Ponto.
Tá bom, exagerei um pouco. Não era
tão simples assim. Na verdade estou ilustrando a sensação que se tinha.
Realmente, Lobis tinha outros
detalhes importantes, mas era uma premissa mais nua e crua que Vampiro. Na
prática, isso levou até a algumas rixas entre os fãs/ jogadores dos dois
livros. De um lado, os jogadores de Vampiro que enxergavam Lobisomem como um autêntico
representante do estilo “matar-pilhar-destruir”, tão criticado por essa geração
então nascente de jogadores preocupados com a interpretação correta de seus
personagens e de seus dilemas morais. De outro, os jogadores de Lobisomem, que
consideravam Vampiro como um jogo onde se interpretavam boiolas traiçoeiros,
prontos a se debulhar em lágrimas diante de dramas pessoais ou dispostos a trair
seu grupo em benefício próprio. Pra muita gente, vampiros e lobisomens eram
como água e vinho.
Mas vamos voltar a Lobis. O jogo
era muito bom mesmo, a despeito do que diziam ou imaginavam. Mesmo não tendo,
pelo menos em números, superado o sucesso de Vampiro, ainda assim o jogo foi
bem sucedido. Vendeu bastante, tinha grupos fiéis de jogadores e durante um bom
tempo disputou o título de jogo queridinho dessa geração dos anos 90, início
dos anos 2000. O bacana era que pra deixar a figura do lobisomem “jogável”, o
autor Mark Hein Hagen teve que mexer um bocado na lenda dos licantropos.
Primeiramente, ele criou uma mitologia em que os lobisomens eram guerreiros
poderosos, mas fadados à extinção, por estarem enfrentando uma entidade maligna
poderosa, numa guerra praticamente perdida. Aquela história de que se for pra
morrer, que o seja lutando e levando um bocado de inimigos junto. Outro aspecto
importante era que os lobisomens passavam a maior parte de seu tempo como
humanos normais (ou lobos normais, dependendo de onde eles tinham nascido,
entre humanos ou lobos), e podiam se transformar a seu bel prazer, não sendo
reféns da lua cheia. A condição de licantropia não era uma maldição, mas sim
uma herança mística passada de geração a geração, uma benção de Luna (a lua) e
Gaia (a mãe-terra), aqui entidades espirituais semelhante a deuses. O objetivo
disso tudo era proteger Gaia da loucura da Wyrm (a tal entidade maligna
poderosa), o poder primordial da entropia, uma força cósmica que outrora
equilibrava a balança celestial ao lado da Wyld (força da criação) e Weaver
(força da ordem), e que agora só buscava destruição, morte e corrupção. Enfim,
só desgraça.
Os Garou, como se auto-denominavam
os lobisomens, cresciam ignorantes de sua condição de super criaturas até a
primeira transformação, quando eram resgatados pelos seus colegas de tribo. Sim, os lobisomens se dividiam
em tribos, cada uma com características e culturas próprias, normalmente
ligadas a alguma tradição cultural humana ou alguma ideologia. Assim,
poderíamos ter um lobisomem de uma tribo descendente de guerreiros nórdicos (os
Cria de Fenris), ou uma tribo de pacifistas defensores dos humanos (Os Filhos
de Gaia), ou uma tribo composta unicamente por fêmeas que tinham sua origem na
lenda das Amazonas da Grécia antiga (As Fúrias Negras). No total eram 13 tribos
jogáveis. Some isso ao fato de você poder escolher se seu personagem iria ser
um guerreiro, um místico, um trapaceiro, um “juiz” ou um guardião das tradições
(os 5 augúrios, o equivalente as
“classes” nos jogos de fantasia medieval, que determinavam o papel do lobisomem
na sua sociedade), e também as 3 raças (nascido
de humanos, ou de lobos, ou do cruzamento proibido entre dois Garou, que gerava
um “impuro”, uma cria normalmente deformada e tida com pária, mas que tinha
alguns benefícios em termo de jogo) e o jogador tinha muitas combinações
interessantes para construir seu personagem.
Os Garou em si eram máquinas de
matar. Podiam assumir 5 formas a seguir: humano, glabro (um humano com aspecto
de fera, mais forte, mas ainda assim mais semelhante a um humano), hispo (um
lobo gigante, pré-histórico) e lobo. Faltou citar a quinta forma, que ficaria
no meio do espectro acima, que é a Crinos, mas deixei pra falar em particular
dela. Essa forma era simplesmente F*DA, era a cereja do bolo dos poderes
metamórficos dos lobisomens, era o que justificava todo o jogo na prática: a
graça era se transformar em crinos e detonar os inimigos, o que fazia valer
dizer que os lobisomens eram máquinas de matar. Não vou descrever como era ela,
vou colocar uma imagem.
![](http://2.bp.blogspot.com/-bBf2fvJD4ho/UjCbHEJjmSI/AAAAAAAAAE8/fPTyhfOQTiY/s320/garou.png) |
Crinos! |
Basta dizer que o mais bocó dos personagens
ao assumir essa forma poderia receber até alguns tiros (desde que não fossem de
balas de prata) e continuar lutando como se nada tivesse acontecido e facilmente
matar vários humanos. Nessa forma, o personagem ganhava o adicional de mais um
metro na sua altura e cerca de 200% seu peso só em massa muscular. Ou seja, um
baixinho de 1,50m e 50kg, se transformaria num monstro de 2,50m e mais ou menos
150kg praticamente só de músculos, garras e presas. Ah, vale salientar que os
garou ainda tinham a sua disposição poderes místicos chamados “dons” capazes de
diversos efeitos poderosos, bem como rituais mágicos e ainda artefatos/armas
chamados de “fetiches”, também com poderes místicos. Muito massa!
![](http://2.bp.blogspot.com/-gI2dUdLl214/UjCcHSb1DyI/AAAAAAAAAFE/V967q2oq9GA/s400/formas-de-um-garou.png) |
As cinco formas: humana (ou hominídea), glabro, crinos, hispo e lobo (ou lupina) |
Claro que todo esse poder não era
em vão. Afinal, além de serem mais fracos que os lobisomens, humanos normais não
dariam bons antagonistas principais, uma vez que entravam em um pânico
sobrenatural chamado “delírio” simplesmente ao avistarem um garou na forma
crinos. Aí era onde entravam os inimigos, que eram muitos, todos com poderes
dignos das mais monstruosas criaturas de filmes B de terror. Os seguidores da
Wyrm iam desde humanos corrompidos por ela (e que ganhavam poderes bizarros em
troca), passando por espíritos perversos vindos do outro lado do mundo espiritual
(sim, os garou também podiam atravessar pra lá e voltar), ou ainda megacorporações
inescrupulosas a serviço do mal, e chegando até mesmo a uma tribo caída de
lobisomens, chamada Dançarinos da Espiral Negra, corrompida pelo poder da Wyrm.
Outro detalhe bacana é que os
lobisomens pertenciam a uma cultura animista, ou seja, na realidade do jogo
tudo tem um espírito que pode ser contatado (desde um espírito de um carro, até
o espírito de uma montanha, ou ainda, em um nível celestial, o espírito do
sol). Como eu disse, os garou ainda eram capazes de atravessar para o mundo
espiritual, paralelo ao nosso e interagir com os espíritos que lá existiam. Nem
precisa falar que lá também era um local perigoso, cheios de espíritos malignos
prontos a atacar o primeiro garou que vissem pela frente. Não era a toa que o
meu grupo de jogo não curtia muito ir pra lá.
Bem galera, tem muita coisa pra
falar aqui em relação a Lobisomem: o Apocalipse, muitos detalhes bacanas que
tive que omitir, mas o post iria ficar longo demais, e eu não quero que vocês
cochilem enquanto lêem. O principal aqui era apresentar uma visão geral do jogo
pra quem não conhecia ou conhecia pouco. O livro teve três edições, sendo que a
primeira não foi lançada aqui. Nossa tradução se baseia na segunda edição
americana, e a Devir ainda publicou a terceira edição, lá fora conhecida como
revised. Mas a terceira edição nem teve
tempo de esquentar o assento: quando ela foi lançada aqui, lá fora a White Wolf
já estava reformulando sua série do Mundo das Trevas, publicando uma nova
realidade para suas criaturas místicas, com novas regras, poderes, personagens
e plots...
![](http://1.bp.blogspot.com/-j00ODqK89Ds/UjCfRYBxhOI/AAAAAAAAAFQ/aTRL6l4_43E/s320/20130910_234501.jpg) |
Meu exemplar da 2ª edição |
![](http://3.bp.blogspot.com/-A9JPqdau__4/UjCfd7HYNrI/AAAAAAAAAFc/Nr_25-LMDY8/s320/20130910_235230.jpg) |
Amostra da arte interna
|
![](http://3.bp.blogspot.com/-4O1gvlc1FXY/UjCf4AdAOuI/AAAAAAAAAFg/Nz9fn4iFd7g/s320/20130705_143323.jpg) |
A inspiração pra bolar as aventuras (opa, olha o merchan)!!! |
Joguei com meu grupo quase duas
décadas de Lobisomem, claro com alguns períodos intercalados, mas nunca abandonamos
totalmente esse formidável RPG. Foi meu primeiro RPG de verdade, até então eu
só tinha jogado Hero Quest (opa, outro assunto para outro post), e também,
minha primeira experiência como mestre de jogo. Posso afirmar que a nova versão
dele, que traz outra ambientação e um outro enredo, chamada Lobisomem: os Destituídos,
apesar de me parecer boa (nunca joguei, mas já dei uma lida) dificilmente irá
alcançar o sucesso de seu antecessor, o mesmo acontecendo com os outros títulos
da White Wolf que substituíram os clássicos. Aqui no Brasil, pelo menos,
Lobisomem: o Apocalipse está marcado na memória de muito marmanjo que passou
incríveis tardes e/ou noites de sábado, regadas a salgadinho e refrigerante (ou
mesmo bolacha cream cracker e água), matando terríveis lacaios da Wyrm e se
divertindo pra cara#*@%$!!!
Até o próximo post galera!
P.S.: A White Wolf lançou lá fora
recentemente a edição comemorativa de 20 anos de Lobisomem: o Apocalipse, um
calhamaço de luxo com mais de 500 páginas reunindo informações do livro básico
e de alguns suplementos. Quando sai em português? Não pergunte besteiras! A
Devir NUNCA vai publicar.